Gilbertto Prado e Suzette Venturelli são artistas de uma geração pioneira de experimentação das artes visuais com as tecnologias digitais entre os anos 1980 e 1990. Ambas as trajetórias estão intimamente ligadas à pesquisa na universidade, entrelaçando a investigação artística com o pensamento coletivo, interdisciplinar e experimental produzido nesses espaços. Suas práticas se contrapõem à lógica produtivista, está comumente associada a uma abordagem utilitarista da tecnologia e à objetividade do pensamento científico, subvertendo seu uso e sugerindo outras formas de estar e perceber a realidade.
As obras apresentadas nesta exposição evidenciam um desvio da ideia de funcionalidade evolucionista da tecnologia moderna, cristalizada no imaginário ocidental desde as primeiras invenções industriais. Nas últimas décadas do século XX, a difusão do fax, do scanner, da fotocópia, da televisão e de um meio digital em desenvolvimento são veículos a serviço da propaganda e da produtividade. Trabalhos como os de Prado e Venturelli apropriam-se destes meios para investigar suas propriedades criativas e narrativas, ora para transformar a interação coletiva, ora para fazer um comentário politicamente engajado sobre o corpo social.
Destacam-se ainda a interação do corpo com a máquina computacional e a exploração da dimensão temporal a partir dessa interface: as intervenções no processo de transmissão de um fax de um ponto geográfico a outro, ou, no intervalo entre a reprodução do movimento do observador diante da câmera e sua projeção na tela, parecem denunciar que a realidade digital para esses artistas não é um simples espelhamento das nossas ações ditas "reais", mas constituem uma abertura para novos sentidos e possibilidades de engajamento sensorial e coletivo.
No fio de suas pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas, suas obras vêm explorando códigos, imagens, performances e outras visões de mundo possíveis a partir de uma arte em rede. Ao lançarem luz sobre novas abordagens das chamadas novas mídias, fazem um movimento crítico na contramão do mito do desenvolvimento tecnológico utilitarista e positivista. Assim, os trabalhos de Venturelli e Prado representam, num arco histórico que abrange desde os anos 1980 até a atualidade, uma série de transformações nas pesquisas sobre arte e tecnologia ao longo do tempo.
Connect (1991)
Vídeo e fotomontagem digitalizada
Duração: 2'26''
Connect nasce de um experimento coletivo, projeto realizado por Gilbertto Prado em 1991, inicialmente interligando Paris, Pittsburgh e São Paulo, em um circuito via fax. A ideia era permitir a pessoas localizadas em diferentes locais do planeta de realizarem simultaneamente um trabalho artístico comum. Em cada local os participantes deveriam estar equipados com dois fax: um para emissão (E) e outro pra a recepção (R) de forma que assim que o papel saia de (R) era encaixado diretamente em (E), sem ser cortado da bobina. Dessa maneira toda recepção se tornava imediatamente emissão e as imagens se sobrepunham e se sucediam numa única e longa página encadeada em tempo real. Neste procedimento, o trabalho coletivo de realização se mostra enquanto processo e é possível visualizar uma topografia das interações e dos registros de cada participante envolvido. Com isso, seu percurso só se faz possível por meio de uma poética coletiva e performática.
Este é um dos projetos de Prado que anunciam traços importantes de sua discussão com a tecnologia ao longo de sua trajetória: as experiências coletivas, os diálogos e os fluxos em rede possíveis a partir dos dispositivos. Sua prática, neste projeto, traz a ideia de Ouroboros – a serpente que morde a própria cauda –, um símbolo presente em diversas culturas, comumente associado à ideia de eternidade e ciclo. No contexto de Connect, o Ouroboros aparece transfigurado ao uso moderno da comunicação, mas seu cerne permanece o mesmo: aqui o fim é também um novo começo. Nesse sentido, a união de duas extremidades, como o início e o fim, são análogos ainda ao campo dos extremos geográficos: o norte e o sul. Conectar realidades sociais, culturais e geopolíticas em uma arena de criação comum é também desafiar as contradições impostas pelo sistema de arte global, justapondo diferentes perspectivas e formas de perceber o processo.
Telescanfax - da série La vendeuse de fer à repasser [A vendedora de ferros de passar roupa] (1991).
Vídeo
Duração: 1'45''
Telescanfax é um projeto de experimentação de transmissão artística de imagens no momento da passagem entre o analógico e o digital nos anos 1990. O processo consistia na leitura de imagens de televisão com scanner de mão e o envio dessas imagens transformadas em tempo real para outro local via fax-modem. Graças à composição dos movimentos de leitura entre o scanner (numérico) e a varredura da imagem televisiva (analógica), obtinha-se uma imagem decomposta, embaralhada, de aspecto enigmático. A primeira série deste projeto é La vendeuse de fer à repasser (A vendedora de ferro de passar roupa). As imagens foram realizadas durante um comercial televisivo de vendas de ferro transmitido em canal de vendas no período vespertino. Eram cenas lentas e contínuas (o que era fundamental para o processo de leitura pela varredura do scanner). O movimento feito por Prado com o scanner remete àquele praticado com o ferro sobre a roupa, em um gesto mecânico e repetitivo que assemelha o scanner, tido como uma “tecnologia de ponta”, a um objeto analógico utilizado na rotina doméstica. Prado se apropria das imagens transmitidas para decompô-las e traduzi-las em uma linguagem própria. Nesse processo, o resultado são imagens embaralhadas, aparentemente indecifráveis, resultantes não apenas do dado imagético do scanner, mas, sobretudo, do movimento realizado pelo artista. Aqui, a importância do gesto, do movimento e da experiência é central, pondo à prova o determinismo das relações tecnológicas e fazendo emergir novos sentidos na relação com estes objetos.
Manacá-de-cheiro (2021)
Obra generativa em linguagem P5JS
Superando a compreensão de que esta obra é um produto óptico-sensorial da programação de algoritmos determinados por Prado e Venturelli, Manacá-de-cheiro é sobretudo resultado de uma observação fenomenológica que se desdobra em experiência perceptiva.
De nome científico Brunfelsia uniflora, essa árvore originária da Mata Atlântica pode atingir cerca de 3 metros de altura. Em copas arredondadas que se estendem a 2 metros de diâmetro, suas folhas ovais e lisas atraem Borboletas-do-Manacá que ali depositam seus ovos, tornando-as alimento exclusivo de lagartas. A temporalidade programável deste trabalho remete à vida e ao esvanecimento dela.
No meio digital, parâmetros ambientais como o posicionamento da luz solar, a mutabilidade cromática das flores de manacá e a relação inegociável da natureza com o tempo são contemplados nos estágios de surgimento e desaparecimento da obra.
Assim, os artistas criam um senso de engajamento ambiental e estético ao se apropriarem de atributos reais da paisagem. Uma vez ativada, a obra opera como um dispositivo comunicante entre o espectador e a manifestação de indicadores naturais do ambiente: o Manacá-de-cheiro cresce através e dentro da tela.
Desse modo, este trabalho desafia a proposição de que a tecnologia nos desengaja do ambiente ao se revelar como uma contradição, recorrendo justamente à tecnologia e a parâmetros algorítmicos para reengajar sensorialmente o espectador à natureza.